quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Verdade Transitória

Há milênios, existia o céu, e de lá nos observavam o(s) deuse(s) em sua onipotência. Na falta de maior conhecimento e melhores explicações, essa era a verdade. Anos se passaram e hoje é fato que o céu não existe. Trata-se apenas da imagem formada pela nossa percepção do infinito que se encontra sobre nossas cabeças. As religiões então se adaptaram e transformaram em simbólico o que antes era literal. Da mesma forma: o homem surgiu do barro e a mulher de sua costela... Vieram então Darwin e a seleção natural e de repente tudo que era fato virou metáfora. E assim poderíamos continuar por páginas e páginas com exemplos de mitos, das mais variadas devoções, que hoje são tratados pelas pessoas que neles acreditam como alegorias, mas que há relativamente pouco tempo atrás eram interpretados com a mais inquestionável seriedade.
                O design inteligente e o deísmo, entre outras idéias, nada mais são que tentativas de relativizar as descobertas trazidas pelo pensamento racional. É um direito que o pensamento supersticioso concede a si mesmo. Um direito que o ceticismo não pode ter, pela sua própria definição. Se uma nova descoberta desmente um conhecimento que se tinha previamente, não se pode simplesmente adaptá-lo para apaziguar ambas as concepções. A não ser que surjam novas evidências, a prática anterior é abandonada. Se um estudo comprova que um remédio que é amplamente utilizado não traz benefícios - ou mesmo traz malefícios - seu uso é suspenso pelo menos até que novas evidências, mais sólidas, apontem que a primeira ação era correta. Como diz o ditado britânico: "in for a penny, in for a pound". Ou seja: não se pode realizar um processo pela metade, aproveitando-se apenas de suas consequências benéficas ou inofensivas.
                A ciência, de fato, não é ateísta, como alguns por vezes equivocadamente apontam. Ela, na realidade, ignora por completo a hipóteses religiosa, pois essa não faz diferença alguma para o processo investigativo. Mas o conhecimento adquirido através do método científico constantemente se coloca em posição antagônica em relação às filosofias pregadas por boa parte das crenças místicas. Estas últimas, por sua vez, vão progressivamente moldando suas "verdades" para que estas escapem a esse conflito (ao menos aos olhos de um observador menos atento).
                Esse processo parece vir acontecendo há séculos e explicaria o surgimento do protestantismo, por exemplo. A crença na transubstanciação foi abandonada, mas o deus onipotente sentado em seu trono supremo exigindo uma adoração ritualística permanece lá. Nos últimos anos, porém, tenho a impressão de que está havendo uma inversão. Cada vez mais as religiões parecem endurecer seus dogmas sem se preocupar em desafiar a racionalidade. Um exemplo: enquanto a biologia e a medicina vêm demonstrando de forma cada vez mais convincente que o homossexualismo nada mais é que uma variante da sexualidade normal e, mais do que isso, que não se trata de uma uma escolha pessoal, a maioria das doutrinas (especialmente as cristãs) insistem em tratar esse comportamento como vergonhoso e até mesmo patológico, passível de "correção".
                O pior, contudo, não é isso. Mesmo noções que aparentemente estavam devidamente solidificadas dentro da cultura humana vêm sendo questionadas de maneira assustadora. O exemplo mais latente é a teoria da evolução das espécies através da seleção natural. Mesmo tendo sofrido inevitáveis complementações ao longo do tempo, são raríssimos os pesquisadores que discordam seriamente de seus aspectos mais importantes. Temos visto, porém, todas as formas de distorção de conceitos e evidências na tentativa de desacreditá-la, em nome da retomada do criacionismo. É impressionante a quantidade de indivíduos que, mesmo com acesso ao conhecimento científico, acabam por manter suas crenças místicas em primeiro plano.
                Ocorre, portanto, uma situação preocupante: mitos, que já foram verdades, tentam de forma cada vez mais escancarada retomar o status anterior.

                                                  "O céu é só uma promessa..."

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Faça uma experiência

"Minha alucinação é suportar o dia-a-dia. Meu delírio é a experiência com coisas reais."
- Belchior, Alucinação (1976)

   Faça uma experiência: tente viver sua vida por um tempo sem fazer uma oração ao acordar. Não vá à igreja. No domingo de manhã, durma até mais tarde. Esqueça o místico e concentre-se no real. Passe por baixo de uma escada, cruze com um gato preto, saia de casa sem ler seu horóscopo. Enfim: viva, apenas. 
   Não agradeça aos céus quando algo na sua vida der certo. Na sua formatura, agradeça a seus pais, que sustentaram seus estudos; a seus mestres, que dividiram seu conhecimento; a seus colegas, que lhe fizeram companhia. Se ficar doente, confie nos profissionais que lhe atenderem. E caso fique curado, seja grato a eles e ao seu próprio corpo. Qualquer outro agradecimento me parece uma injustiça para com essas pessoas. 
    Se algo der errado, não faça promessas. Tente interpretar as coisas racionalmente e descobrir o porquê de tudo não ter ocorrido como você esperava. Não procure culpados. Na imensa maioria das vezes, eles não existem. Risque essa palavra, "culpa", do seu dicionário. Não pense em punição, pense em retratação.
  Escolha uma batalha. Há muitas por aí, algumas mais óbvias que outras. Acredite; mas não assim, intransitivamente. Acredite em algo. De preferência acredite em idéias, não em palavras. Você verá que grupos que se unem por interesses em comum, e não por medos irracionais, costumam ser muito mais receptivos. 
   Tenho vivido dessa maneira há um certo tempo, já, e posso dizer que é possível. Tenho certeza de que minha vida não é pior que a sua. E pode muito bem não ser melhor. Mas eu não gasto minha saliva com frases repetidas ao vento. Meus joelhos não estão esfolados por sustentarem por horas o peso do meu corpo. Procuro a solução e não a oração. Como diz a mesma canção de Belchior que citei no princípio, "amar e mudar as coisas me interessa mais". 
    Você descobrirá que consegue. E não é difícil. Verá que tudo permanece igual, com uma diferença: há um grande espaço na sua vida que pode ser preenchido por outras atividades (mais prazerosas). Música. Livros. Filmes. Esportes. Mais tempo com quem você ama. Com seu animal de estimação. Um dia de sol no inverno. Um banho de chuva no verão. Creio que ninguém, "divino" ou não, tem o direito de lhe privar disso por um segundo sequer.


sexta-feira, 15 de julho de 2011

A Sopa de Pedra ou: Uma Metáfora Sobre o "Poder da Oração"

    "Um frade pobre, que andava em peregrinação, chegou a uma casa e, orgulhoso demais para simplesmente pedir comida, pediu aos donos da casa que lhe emprestassem uma panela para ele preparar uma sopa – de pedra... E tirou do seu bornal uma bela pedra lisa e bem lavada. Os donos da casa ficaram curiosos e, de imediato, deixaram entrar o frade para a cozinha e deram-lhe a panela. O frade colocou a panela ao lume só com a pedra, mas logo disse que era preciso temperar a sopa... A dona da casa deu-lhe o sal, mas ele sugeriu que era melhor se fosse um bocado de chouriço ou toucinho. E lá foi o unto para junto da pedra. Então, o frade perguntou se não tinham qualquer coisa para engrossar a sopa , como batatas ou feijão que tivessem restado da refeição anterior... Assim se engrossou a sopa “de pedra”. Juntaram-se cenouras, mais a carne que estava junta com o feijão e, evidentemente, resultou numa excelente sopa. Comeram juntos a sopa e, no final, o frade retirou cuidadosamente a pedra da panela, lavou-a e voltou a guardá-la no seu bornal... para a sopa seguinte!" [1]

    Essa fábula me foi apresentada durante o período em que vivi em Portugal, há cerca de dois anos. Imediatamente me veio à cabeça que ela pode servir de maneira muito propícia como uma metáfora para explicar parte do fenômeno sócio-cultural da religião. O fato de seu personagem principal ser um frei foi apenas uma fortuita coincidência.
      É fácil perceber que a tal sopa tranquilamente poderia ter sido preparada sem o uso da pedra, tendo esta servido apenas como a desculpa do sacerdote para ter acesso aos verdadeiros ingredientes. Da mesma forma, o indivíduo religioso, quando confrontado com um problema, tem como primeiro instinto recorrer ao "poder da oração". Se perdeu algum item de valor, por exemplo, recita o responsório de Santo Antônio. Se o problema é urgente, a solução é a oração de Santo Expedito. Se há doença na família, basta clamar pela intervenção da Virgem Maria, em alguma de suas formas místicas. E assim sucessivamente. E não são poucas as vezes em que as adversidades são efetivamente superadas. Mas a grande questão é a seguinte: sem essas iniciativas, seria o desfecho semelhante? Sem a pedra, seria possível fazer a sopa?
      O fato é que na vida de qualquer pessoa os eventos não podem ser sempre favoráveis; não são muitos, porém, os percalços que tem a capacidade de ser devastadores a longo prazo. Superamos a maioria deles por meio de nossas próprias ações, ou seja, de maneira natural. Não conheço nenhuma pessoa, religiosa ou não, que tenha encontrado um objeto perdido sem tê-lo procurado (ou sem que um terceiro o tenha feito). Aquelas que rezaram enquanto trabalhavam na resolução de seus problemas tenderão a interpretá-la como graça divina. E são esses "pequenos milagres", penso eu, que acabam por justificar as crenças em poderes sobrenaturais. Os "grandes milagres", como pessoas que sobrevivem a doenças incuráveis, por exemplo, ficam apenas na imaginação, pois muito poucas pessoas - muito provavelmente nenhuma - realmente os presenciou. 
     E quando tudo realmente vai mal e a adversidade persiste? A religião, para esses casos, tem uma explicação bastante conveniente (e, no mínimo, desumana): falta de fé. Nesse caso, lemos nas entrelinhas: culpa tua. Mesmo que tenha acreditado com todas as suas forças (e não entenda como isso pode ter ocorrido), a pessoa fica com a responsabilidade em suas mãos. No fim das contas as coisas acontecem da maneira como iriam acontecer de qualquer maneira, dependendo do acaso e, obviamente, das ações dos indivíduos envolvidos. E a religião tem respostas prontas para qualquer um dos desfechos...
      Assim, as pessoas permanecem confiando nessas jaculatórias sobrenaturais. E parecem temer o efeito que haveria em suas vidas caso as deixassem de lado. É a sempre lembrada "aposta de Pascal": na dúvida sobre a existência de um ser onipotente que controla os eventos de seu trono invisível, melhor ter a certeza de não desagradá-lo caso seja real. Mesmo que isso signifique passar o resto da vida toda tomando uma sopa preparada com uma pedra em seu interior.



[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Sopa_de_pedra